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Antiguidades – Cora Coralina

Quando eu era menina bem pequena,

em nossa casa,

certos dias da semana se fazia um bolo,

assado na panela

com um testo de borralho em cima.

Era um bolo econômico,

como tudo, antigamente.

Pesado, grosso, pastoso.

(Por sinal que muito ruim.)

Eu era menina em crescimento.

Gulosa, abria os olhos para aquele bolo

que me parecia tão bom e tão gostoso.

Era só olhos e boca e desejo daquele bolo inteiro.

Minha irmã mais velha governava.

Regrava.

Me dava uma fatia, tão fina, tão delgada…

E fatias iguais às outras manas.

E que ninguém pedisse mais !

E o bolo inteiro, quase intangível,

se guardava bem guardado,

com cuidado, num armário, alto, fechado, impossível.

Era aquilo, uma coisa de respeito.

Não pra ser comido

assim, sem mais nem menos.

Destinava-se às visitas da noite,

certas ou imprevistas.

Detestadas da meninada.

Criança, no meu tempo de criança,

não valia mesmo nada.

A gente grande da casa usava e abusava

de pretensos direitos de educação.

Por dá-cá-aquela-palha, ralhos e beliscão.

Palmatória e chineladas não faltavam.

Quando não, sentada no canto de castigo

fazendo trancinhas, amarrando abrolhos.

“Tomando propósito”.

Expressão muito corrente e pedagógica.

Aquela gente antiga, passadiça, era assim:

severa, ralhadeira.

Não poupava as crianças.

Mas, as visitas…

– Valha-me Deus !…

As visitas… Como eram queridas,

recebidas, estimadas, conceituadas, agradadas !

Eu fazia força de ficar acordada

esperando a descida certa do bolo

encerrado no armário alto.

E quando este aparecia,

vencida pelo sono já dormia.

E sonhava com o imenso armário

cheio de grandes bolos ao meu alcance.

De manhã cedo quando acordava,

estremunhada, com a boca amarga,

– ai de mim – via com tristeza,

sobre a mesa: xícaras sujas de café,

O prato vazio, onde esteve o bolo, e um cheiro enjoado de rapé.

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Cora Coralina é a grande poetisa do Estado de Goiás. Em 1903 já escrevia poemas sobre seu cotidiano, tendo criado, juntamente com duas amigas, em 1908, o jornal de poemas femininos “A Rosa”. Em 1910, seu primeiro conto, “Tragédia na Roça”, é publicado já com o pseudônimo de Cora Coralina. Seu marido a proíbe de integrar-se à Semana de Arte Moderna, a convite de Monteiro Lobato, em 1922. Em 1965, lança seu primeiro livro, “O Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais”. Em 1976, é lançado “Meu Livro de Cordel”.

Em 1980, Carlos Drummond de Andrade, como era de seu feitio, após ler alguns escritos da autora, manda-lhe uma carta elogiando seu trabalho. Em 1983, seu novo livro “Vintém de Cobre – Meias Confissões de Aninha”, é muito bem recebido pela crítica e pelos amantes da

poesia. Em 1984, torna-se a primeira mulher a receber o Prêmio Juca Pato, como intelectual do ano de 1983. “Estórias da Casa Velha da Ponte” é lançado pela Global Editora. Postumamente, foram lançados os livros infantis “Os Meninos Verdes”, em 1986, e “A Moeda de Ouro que um Pato Comeu”, em 1997, e “O Tesouro da Casa Velha da Ponte”, em 1989. Morre em 1985 com 96 anos. Sua casa faz parte do conjunto arquitetônico tombado pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade.

 

 

 

A casa da Ponte, em Goiás Velho, onde Cora Coralina viveu a maior parte de sua vida.

 

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