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Construir a casa nova

Meses de discussão sobre o projeto e eis que algumas pranchas contêm o que será um dia a nossa casa.

Providências de aprovação na Prefeitura, adequação às regras do condomínio, perda de tempo, chateação e muito dinheiro para taxas e impostos de todo tipo imaginável. Orçamento, compra de material, movimento de terra, cansaço, manhãs de domingo e noites de sábado em análise de contas, projeções de custo e planilhas.

Um dia, cansada de comparar preços de aço de várias bitolas, pensei que tem todo fundamento o conceito de que construir uma casa é uma cansativa e desgastante odisséia, me ocorreu analisar o sentido exato da palavra construir.

Pego o dicionário e leio: Construir – Edificar, dar estrutura a, formar, conceber.

Fico pensando nos diversas sentidos dessas palavras e nas suas variações, sempre de conotação positiva: edificante, construtivo, estrutural.

E de repente, fica clara a sabotagem que estou fazendo comigo mesma ao encarar essa fase de construção como uma etapa de provação, obrigatória para a obtenção do resultado desejado que é a casa nova.

Ao fazer isso, deixo escorrer naquelas valas a chance de saborear essa experiência, de ver esse momento como ele realmente é: um processo construtivo.

De um modo geral, não é fácil reconhecer e apreciar as diversas oportunidades de alegria que temos, e que perdemos exatamente por sobrevalorizar os pequenos entraves e contratempos.

Outro dia, li numa crônica que os momentos realmente importantes estão ligados a “coisas pequenas, que nem foram notadas por outras pessoas: cenas, quadros: um filho empinando uma pipa na praia; noite de insônia e medo num quarto escuro, e do meio da escuridão a voz de um filho que diz: ´eu gosto muito de você!`; filha brincando com uma cachorrinha que já morreu, um velho, fumando cachimbo, contemplando a chuva que cai sobre as plantas e dizendo: ´Veja como estão agradecidas!´Amigos. Memórias de poemas, de estórias, de músicas.”

E fiquei desfiando para mim mesma uma coleção de imagens de momentos assim simples, que preenchem nossa vida de forma definitiva, e nós só vamos nos dar conta disso muito mais tarde…Levar as meninas para a escola, preparar rabanadas no final do domingo, contar estórias sem fim, que continuavam meses a fio, ver o mar a primeira vez, o cheiro dos pêssegos da Praça da Alfândega de Porto Alegre, um pacote que chega pelo correio…

Rápidas, nem sempre fáceis, as experiências só têm a sua real importância reconhecida tempos depois de vividos.

Como os paralelepípedos de Proust,  chave para uma viagem “… que é uma impressão do passado… e que só podemos conhecer quando preservada, pois no momento em que a vivemos, ela não se apresenta à nossa memória, mas ao centro das sensações que a suprimem“.  No livro “O Tempo Redescoberto”, Proust conta que ao tropeçar em um paralelepípedo, relembra uma viagem e florescem nele “todas as outras sensações somadas àquele mesmo dia, e que haviam permanecido à espera”. Nesse momento, ele compreende que a memória involuntária lhe permite reviver com mais intensidade, aquele momento que o cansaço ou as atribulações o haviam impedido de aproveitar.

Dito de maneira menos elaborada, o que vivemos aqui e agora consome atenção demais enquanto estamos vivendo, para que possamos avaliar o seu impacto, e requer tempo – esse enigmático componente – para fazer sentido no novelo de uma vida.

Olho novamente para os buracos cavados na terra e que começam a se encher de ferro e concreto, e penso que um dia, ao consultar meu baú de tesouros, talvez encontre imagens dessa manhã de segunda feira, de céu azul, em que eu olhava para tudo isso preocupada com os custos crescentes do aço, e deixava passar um pedaço importante das emoções e forças potenciais do concreto que se ergue para edificar e construir o casulo de uma nova etapa da nossa vida.

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