Ele me chamou atenção pela primeira vez no auditório da Escola de Engenharia, assistindo a uma aula de Geometria Analítica. Sentado ao meu lado, um jovem magrinho levanta o braço e dirige uma pergunta ao professor.
Era apenas um entre os quinhentos rapazes que freqüentavam as matérias do básico. Voz cheia, de locutor de rádio, firme, desproporcional ao corpo franzino. A pergunta era inteligente e mereceu uma longa dissertação do professor.
Semanas depois nos encontramos na sala de desenho técnico, matéria que era meu terror. Paciente, me deu algumas dicas preciosas sobre perspectiva.
Aos poucos fui sabendo mais sobre ele. Tinha entrado na Universidade com 17 anos. Morava na Casa do Estudante e não tinha dinheiro nem para o lanche.
Tentava de tudo para conseguir uns trocados, incluindo vender carnê do Baú da Felicidade. Já tinha sido ajudante no cultivo de horta e escrevera carta que os meninos do orfanato enviavam para os padrinhos americanos, ao estilo da personagem do filme Central do Brasil. Foi auxiliar de alfaiate (onde aprendeu a passar camisas como ninguém), auxiliar de eletricista e por último dava aulas de matemática e física.
Estava deslumbrado com a liberdade de morar sozinho e ainda era muito religioso. Até os seis anos fora criado pela avó. Aos sete anos foi morar num orfanato junto com outras 99 crianças. Para ele a figura de pai e mãe era do casal que dirigia a instituição, e a única noção de família vinha da figura querida da avó.
Aos quinze anos, conheceu a mãe biológica e desgostou um pouco do que encontrou. Talvez ela fosse muito diferente da imagem que tinha idealizado. Do pai nunca soube sequer o nome. Ficava constrangido ao preencher fichas de identificação e indicar “pai desconhecido”.
O orfanato, mantido por missionários americanos protestantes, proporcionava uma educação muito rígida e de muita disciplina, incentivando fortemente os estudos e a prática religiosa. No recreio e nas horas vagas seu lugar preferido era a biblioteca da escola.
Aos quinze anos foi para o seminário para se tornar pastor. Primeiro porque era excelente orador, depois porque era excelente aluno: terminou o ginásio com média global 98, feito inédito até então.
Depois de dois anos no seminário desistiu de ser pastor. Queria ir morar na capital, entrar na Universidade, ser Físico Nuclear, experimentar a vida, viver por si mesmo.
Comeu o pão que o diabo amassou. Morou de favor aqui e ali até conseguir uma vaga na Casa do Estudante. Quando o conheci, já dava aulas de física numa escola de segundo grau.
Seu guarda-roupa tinha duas camisas, duas calças de brim, uma jaqueta jeans e um gravador de fita cassete (um Evadin) comprado a prestação. E muitos, muitos livros…
Sempre foi especial em tudo, até nos exageros.
Casamos em 1975. Na busca de ganhar melhor passou num concurso para escrivão. De manhã era aluno da Física e militante de esquerda (um socialista cristão). À tarde, era escrivão, obrigado a ouvir os depoimentos dos presos da ditadura, no auge da repressão. Fazia o que podia…
Várias vezes foi repreendido pelo seu chefe, por participar de passeatas de estudantes. Com seu jeito de bom menino acabava por conquistar as pessoas e sempre achou quem o protegesse do pior. Até que um dia não suportou mais a pressão e se demitiu.
Foi trabalhar na Caixa Federal. Para desespero geral desistiu do curso de Física no semestre da formatura.
Foi começar tudo de novo no curso de Publicidade. Em pouco tempo obteve quatro diplomas: Publicidade, Relações Publicas, Jornalismo, Radialismo.
Foi aluno do primeiro MBA da FGV em Goiânia e as estantes para os seus livros já ocupavam uma parede na nossa casa.
Fez carreira na Caixa. Chegou a assessoria de imprensa da Presidência da CEF. Um dia, teve que escolher entre manter o cargo ou continuar a participar da liderança dos movimentos de esquerda. Deixou o cargo.
Idealista, sempre acreditou que podia fazer a diferença. Aos poucos foi encontrando seu lugar no mundo.
Sempre foi um pai carinhoso e dedicado das duas encantadoras filhas e sem sombra de dúvida é um avô nota dez.
Publicou dois livros de poesia, tornou-se católico, desistiu da militância de esquerda, trabalha como um danado na empresa da qual é sócio e acredita que seu papel hoje é gerar empregos.
Dezenas de viagens ajudaram a aprimorar o domínio de francês, inglês e espanhol. Agora está aprendendo italiano. Apesar do pouco tempo livre que tem, nunca deixou de lado a literatura, sua grande paixão.
Sabe escolher e servir um bom vinho, adora Mozart, mantém o espírito divertido e o charme de sempre, já não é mais tão magrinho, e conseguiu um tom prateado nos cabelos.
E neste sábado ensolarado, a nossa casa parece cem vezes maior com a sua ausência.
Mas a sua presença na Flórida é de grande importância para ajudar o Craig e o Lucas enquanto a Maíra está no hospital aguardando a chegada do Benjamin.
E eu só posso agradecer a Deus todos os dias por ter na minha vida alguém tão especial, o meu Beto, ainda mais no dia de hoje, em que comemoramos o seu aniversário de 56 anos.
PS – Este post foi publicado pela primeira vez em 05 de fevereiro de 2011.