O que pensam essas pessoas enquanto dirigem nesse mar de carros da Avenida Paulista nesse início de manhã cinzenta? A maior parte dos rostos que vejo mostra expressões compenetradas, dando a impressão de que o sinal fechado é a senha para mergulhar em um mundo complexo e q
No que pensa essa senhora bem penteada, olhando para frente determinada e firme, como se seu carro brilhoso tivesse que arrancar e ganhar a primeira posição do grid de largada? Estaria com pressa de chegar ao trabalho para evitar olhares de censura pelo atraso? Pensaria que tem que aproveitar o horário do almoço para resolver alguns problemas da casa? Ou está se lembrando dos longos silêncios de ontem à noite?
Todos temos nosso oceano interior que aflora em frestas ou nos inunda.
Eu me lembro da música “não, não posso parar, se eu paro eu penso, se eu penso eu choro”, como se fosse possível fugir de si mesmo indefinidamente. Se é possível esquecê-lo por algumas horas, não há como ignorar nosso mundo interior quando olhamos para o teto à noite, ou para um ponto indefinido em qualquer momento do dia.
Ele está sempre lá, influenciando nossas atitudes, refluindo nos momentos de decisão, como um mentor difuso, integrante de nós.
Às vezes transparente e calmo, não raro tumultuado e tempestuoso esse universo habitado por pessoas, imagens e sentimentos também é pleno de lacunas, de silêncios, de palavras não ditas, de indagações “e se?”.
Mistura lembranças de cheiros e sabores, a cor da roupa numa data especial, as lágrimas de uma forte decepção, um momento de profunda alegria, várias manhãs de Natal, o medo das contas a vencer, o terror das contas vencidas, o desejo negado, um olhar terno, o sonho adiado.
Às vezes o oceano interior é cheio de sombras, soterrado em mágoas não resolvidas, escurecido pela amargura. Ou se parece mais com áreas abertas e ensolaradas, onde os fantasmas foram banidos pela claridade.
Mas me parece mesmo que transitamos entre os dois, como se nossa morada interior nos permitisse andar de um lugar para o outro, alternando-nos entre sonhos acalentados, esperança de afeto, e no momento seguinte um silêncio de portas fechadas.
O sinal abre e os carros se vão, alguns deixam a Paulista e pegam a Frei Caneca.
A senhora do carro prata continua em linha reta, sem olhar para o lado…
Talvez ainda esteja pensando no silêncio de ontem à noite…
“Eu sempre te disse que era grande o oceano para a nossa pequena barca.”
Cecília Meireles
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