Como será que a memória organiza as nossas lembranças?
Ordenadas, em catálogos indexados por importância?
Móveis, trocando de posição conforme o acontecimento do dia?
Misturadas, uma permeando a outra, ligadas por algum elo que não identificamos?
Soltas, livres para se apresentarem quando quiseram?
Obedientes, aguardando um chamado, um cheiro, uma voz que as tire de uma gaveta sombria e lhes devolva a cor e o brilho?
Que mistérios estão submersos em nós, esmaecidos sob um cotidiano de rotinas e tarefas, no qual mal ousamos questionar nosso estado de espírito? Como uma foto que, por estar no aparador da sala e sob nosso olhar cotidiano, não enxergamos mais.
E se a coragem fosse suficiente para rever as fotos, reler as cartas, revisitar sentimentos, rever as imagens mentais que guardamos com zelo inconsciente?
Me vem à mente uma estreita estrada, pó vermelho fino, mato crestado pela seca prolongada de agosto, ostentando uma camada empoeirada que igualava em tons de terra o pouco de verde que sobrevivera.
Quase todos os dias pelas duas da tarde eu percorria uns quatro quilômetros nessa estradinha, até alcançar, uma frondosa mangueira, imune à seca e à poeira que um eventual e distante carro levantava na sua rota.
Repassando aquele ambiente na memória percebo a distância física e psicológica entre aquela menina de 12 anos e a mulher de 51 que escreve sentada agora, com o conforto de um suco gelado e uma temperatura agradável.
A árvore era um refúgio seguro e secreto, e ali eu podia ler sem medo os livros que tanto amava e que me ajudavam a criar um mundo imaginário tão forte que penetrava o mundo real e o transformava de verdade.
Sob aquela mangueira li inúmeros volumes de romances compactos da coleção de capa dura do Readers Digest e toda a Comédia Humana de Balzac, emprestados, um a um pelo meu professor de literatura.
Mais tarde, aos 15 anos, a criação desse mundo imaginário passou a ser um sistema de defesa complexo e relevante.
Já morava em Goiânia, estudava em um Colégio Católico para moças, onde passava o dia, e trabalhava à noite como garçonete em um bar de periferia de propriedade dos meus tios.
Pela manhã, meu mundo era de meninas de classe média alta se preparando para se tornarem boas esposas e mães, com educação primorosa, incluindo estudos de francês, latim e grego. No regime de semi-internato ficava no Colégio até ás cinco da tarde, depois dos estudos de filosofia e sessões de leitura, etiqueta, religião e história da arte.
Éramos então três bolsistas, as três meninas pobres que, á custa de notas exemplares, garantiam o direito de frequentar um mundo ao qual não pertencíamos.
No final da tarde ia direto da escola para o bar, o tempo suficiente só para trocar o uniforme. No final de semana o turno começava de manhã e ia até tarde da noite.
Convivia, de segunda a segunda, com motoristas de caminhão, pedreiros, carregadores, serventes, que ao final de um duro dia de trabalho, iam ainda sujos para o bar conversar, jogar bilhar ou beber.
Era gente simples e pobre, alguns agradáveis, outros nem tanto. No geral tinham em comum um certo traço de rudeza, que o trabalho duro e a vida sem recompensas vai desenhando na personalidade, na voz e no rosto. Depois de algumas horas o álcool cumpria sua missão, e a rudeza se transformava em grosseria, e daí para uma eventual briga era um passo.
A cada dia que passava era cada vez mais difícil sair do mundo sonhado do colégio e ir para a realidade do bar. Aos poucos, para sobreviver, fui aprendendo a não voltar mais para a realidade, ainda que tivesse que ir para o bar trabalhar.
Assim, os frequentadores passaram a receber nomes dos romances que lia, e a se portar de acordo com os personagens. Os romances russos forneceram muitos nomes e personalidades para aquelas pessoas.
Com o tempo já conseguia enxergá-los com outra roupa, com outra face, com outra voz. Passei a criar um dicionário de tradução para as frases que diziam e que tinha relação direta com o que eu lia durante a tarde no colégio.
Assim, para um personagem britânico, “põe aí uma dose de pinga!” significava “pode me servir um pouco de brandy?”.
Depois o próprio ambiente passou a ser diferente, e a conter cada vez mais elementos imaginários que tornaram possíveis os anos que passei ali. Era quase um ensaio de teatro, onde só eu conhecia o texto e ninguém mais sonhava que fazia parte da peça.
Quando alguém estranhava, meu tio comentava: “ela é meio esquisita mesmo”.
O elo que me mantinha na normalidade era a convicção profunda e absoluta que meu mundo imaginário é que era o real, e que atingi-lo era só uma questão de tempo e de vontade firme.
E olhando de agora, aquelas noites são distantes fotos amareladas de uma fase que definiu boa parte do que penso e do que sou hoje.