Quando Maíra fez quinze anos, seu presente de aniversário foi uma viagem à Europa em abril, já na primavera, mas quando ainda fazia muito frio por lá…
Havia muita expectativa das meninas nessa viagem pois seria a primeira internacional, já que durante muitos anos elas ficavam com a avó aguardando nosso retorno. Além da saudade, cada retorno sempre tinha a expectativa de presentes, bonecas Barbie e estórias de montanhas, aventuras e lugares retratados nas cores que nossa modesta Olimpus Trip-35 conseguia registrar.
Essa viagem teria uma grande novidade para nós também: depois de rever amigos queridos na França partiríamos pela primeira vez rumo à Itália. Isso significava que atravessaríamos os Alpes de carro no final do inverno.
O ritual de preparação da viagem incluiu a compra de casacos e roupas de inverno. Seria uma missão difícil para quem já tinha contabilizado no orçamento quatro bilhetes aéreos e hotel para 28 dias de viagem. Além disso, não é tarefa simples comprar roupa de inverno em Goiânia. Uma amiga deu a dica preciosa: vá ao Bazar do PT.
Assim, a fonte dos belos casacos foi um brechó do PT que recebia roupas de inverno doadas por europeus para a nobre causa do Partido dos Trabalhadores, e que sob o sol de Goiânia, não faziam nenhum sucesso.
No tal Bazar roupas de inverno de primeira linha eram vendidas por quase nada, por absoluta falta de mercado. Para minhas meninas experimentar e escolher as roupas de inverno foi uma festa. E eu me apaixonei perdidamente por um casaco verde.
Chegando em casa com meu elegante casaco, depois de buscá-lo da lavagem a seco, fui colocá-lo com todo cuidado no guarda-roupa, ainda no plástico protetor da lavanderia, à espera do dia de portá-lo nas montanhas nevadas de Chamonix.
O ato de colocá-lo no cabide e pendurá-lo me fez pensar no momento oposto, em que ele deixou uma casa européia para fazer sua viagem até Goiânia.
Tentei imaginar o momento em que uma senhorita ou senhora teria aberto seu guarda-roupa em algum lugar da Europa e escolhido entre as roupas dependuradas, as peças das quais ela poderia abrir mão.
Pelo estilo do casaco em tom verde escuro, bem cortado, etiqueta francesa, praticamente novo, ela não era uma operária. Certamente pôde escolher entre vários outros que possuía, ou porque não lhe faria falta, ou porque acreditava profundamente que sua generosidade faria a diferença de alguma forma.
Saberia ela que o destino de seu casaco seria uma doação para ser distribuída entre diversos partidos de esquerda no mundo, ou já teria a destinação expressa de ajudar os companheiros de esquerda que naquele início de 1994 tentavam estabelecer o Partido dos Trabalhadores no Brasil?
Pensaria ela que uma outra mulher, muito menos favorecida pela sorte, ficaria livre do frio no dia a dia de sua vida de operária, com aquele aconchegante casaco de cashmere? Ou pensava ela em uma outra mulher idealista, que também lutava pela causa dos pobres e oprimidos em terras distantes, sob inverno inclemente?
Ou ainda teria ela sido convencida da nobreza de seu gesto, a ponto de destinar seu melhor casaco para a causa do partido, ou seria ela alguma universitária que, nos anos 90, professava o ideal da esquerda, sob o teto de alguma casa rica, como parte do charme associado à visão de um mundo mais justo e igualitário?
Na segunda hipótese, talvez tenha ela separado o casaco, ao chegar em casa depois de uma longa discussão sobre os males do capitalismo, tema obrigatório em discussões de estudantes que se encontravam em bares fechados, encontráveis em qualquer cidade européia com uma boa universidade, onde se respirava uma fumaça de cigarros de cortar com faca.
Quis o destino que o tal casaco viesse parar sob o céu e o sol de Goiânia, nos ombros de uma senhora que jamais moveria um dedo pelo PT e que comprara o casaco para consumar um dos ritos mais simbólicos da pequena burguesia: viagem à Europa para comemorar os quinze anos da filha.
E por mais de dez anos o casaco foi um excepcional companheiro nas viagens de trabalho e de lazer. Até que foi substituído por um novo, dessa vez adquirido em uma loja da Pensilvânia.
O novo casaco tinha a nobre missão de fazer bonito no casamento de minha filha, a mesma menina que, aos quinze anos me viu escolher o velho casaco verde, e que depois, aos 24 anos, me acompanhou na compra do novo.
De volta a Goiânia, o casaco verde encontrou finalmente seu destino: os ombros de Luíza, minha fiel escudeira há muitos anos, que tornou possível que eu enfrentasse tantas lutas, com a retaguarda garantida, nos bons almoços que prepara e na casa mantida em ordem.